quinta-feira, 21 de maio de 2020

O mistério da maldade



Valentina, desculpa. Em nome de todos aqueles que pela tua vida passaram e nada conseguiram fazer para este desfecho trágico. Desculpa, mas a vida não é assim. Os pais gostam dos filhos, os afetos normalmente formatam corações. Sabes Valentina, devias estar a brincar. A ver os bonecos, adultos a lerem-te as histórias de fadas e das princesas.
Conhecias a Cinderela, Valentina? Ou a fada Sininho? O Peter Pan? São histórias de finais felizes, onde os irmãos se protegem e são cúmplices, onde o bem ganha ao mal, onde o sol nasce para todos da mesma forma. 
Desculpa, Valentina, se aqueles que mais te deviam proteger não o fizeram. A culpa não é tua. Os fantasmas que te faziam ter medo do escuro eram eles. Eram os teus monstros, o que provocavam o medo, o alimentavam de terrores que eram deles. 
Um pai, sabes, tem o dever de proteger a filha. Desculpa, se não foi assim, mas ser pai é coração, não é sangue. E o que a vida te deu, nunca te soube amar.
Peço-te novamente desculpa, se sofreste às mãos daqueles em quem confiavas. Tu não merecias, afinal não tinhas mais nada para dar além de amor. A culpa não foi tua, acredita, nunca será. Não fizeste nada  de errado, foste criança e tentaste ser feliz.
O que se passou contigo, Valentina, não é único em Portugal. O Estado falha muitas vezes, os vizinhos fecham os olhos, as comissões de proteção de menores não têm tempo para meninas como tu.
Tu alertaste, da forma que o sabias fazer. Tentaste gritar ao mundo na primeira fuga, mas estávamos todos demasiado atarefados. Connosco próprios, para te ouvirmos.
É pena, mas não és a única. Com mais frequência do que queremos houve outros como tu.
A Maria João, sabias, tinha apenas sete anos quando o pai a asfixiou com o cordão de um roupão. Nesse dia levou-a a jantar ao seu sítio preferido. Comprou lhe um vestido de princesa, mais tarde, quando a menina já mostrava sinais de sono, matou a. Traiu-a, como o teu pai te traiu a ti. Enganou-a, falhou no mais importante. Sabes Valentina, nesse dia esse homem que nunca foi um verdadeiro pai mandou mensagens à mãe da menina a dizer “Se ela não é minha não é de ninguém”. 
Eu, Valentina, tinha mais ou menos a tua idade. Estava a jantar com vários jornalistas. Ligaram- lhes e disseram que se tinha passado alguma coisa ali perto. Quando lá chegámos e sem imaginar o cenário de terror que íamos encontrar, fiquei à porta da casa. A minha mãe foi falar com os polícias e fiquei no carro. Acharam que era só um falso alarme.
Quando vejo os bombeiros a sair daquele prédio, um dirige-se imediatamente a mim e começa a chorar. Do alto dos meus nove anos não percebia o que estava a passar, porque é que aquele adulto, homem feito, parecia uma criança. O bombeiro disse que era uma menina igual a mim que estava lá em cima, morta.
E eu, Valentina, nunca mais esqueci o olhar daqueles que sentem que nada conseguiram fazer para evitar aquele desfecho.
Mas sabes, minha querida, já estavas noutro lugar quando muitos tentaram tudo. Sabias que houve bombeiros que de noite palmilharam a serra? Populares que se juntaram para te procurar? Militares da GNR, com cães, que nunca perderam a esperança? Eram mais de 600, movidos pela esperança de te salvar. De te dar a segunda oportunidade de seres feliz. 
Nesses dias, não sei se ouviste, chamaram-te princesa, como nos contos de fadas. Nessa altura o teu corpo já jazia, frio, numa qualquer berma da estrada. Mas o teu sorriso dava alento, enchia corações de esperança, muitos tentavam por tudo não desistir.
Como foi possível aquele fim da Maria João, perguntei-me eu, anos mais tarde, já não tinha a tua idade. Como se mata alguém que vivemos para proteger, pergunto agora, rapariga feita, a quem deixaram sempre ser feliz.
O mistério da maldade nunca será possível de entender. Quando os fantasmas deles se transformam nos nossos monstros destroem tudo à sua volta. Não te fizeram feliz, porque não sabiam como se faz. Não te amaram, porque nunca serão capazes de o fazer. 
Por isso, acredita  Valentina, o erro nunca foi teu. São eles, que serão sempre infinitamente mais infelizes do que tu, porque nunca te conseguiram fazer feliz.

1 comentário:

O mistério da maldade

Valentina, desculpa. Em nome de todos aqueles que pela tua vida passaram e nada conseguiram fazer para este desfecho trágico. Desculpa, ...